NOTA DE AULA II
(aulas 4, 5 e 6)
Unidade II - Origem da
Filosofia e desenvolvimento histórico no pensamento grego. 1.
As origens no mundo grego
Para que serve a filosofia?
Costumo dizer que a filosofia não serve para nada e dela devem se aproximar
apenas os que buscam a verdade. Somente a partir desta ótica é possível
satisfazer o objetivo da filosofia, que não busca fins práticos e não tem
interesses externos como a ciência, a arte, a religião e a técnica.
Pelo
contrário, a filosofia tem como único objetivo o conhecimento; ela procura a
verdade pela verdade. A filosofia, como disse Aristóteles, na Metafísica, é “livre”, pois não se
destina a nenhum uso de ordem prática, realizando-se na pura contemplação da
verdade.
Dissemos
anteriormente que todas as coisas podem ser objeto de indagação filosófica.
Como decorrência disso, pode haver uma filosofia do homem, dos animais, do
mundo, da vida, da matéria, da sociedade, da política, da linguagem, do
direito, da religião, do riso, do jogo etc. Na verdade, porém, aqueles que são
chamados filósofos estudam de preferência somente alguns problemas, aqueles que
são designados com os nomes de lógica, epistemologia, metafísica, cosmologia,
ética, psicologia, teodicéia, política, estética, que constituem as partes mais
importantes da filosofia.
A
lógica
se ocupa do problema da exatidão do conhecimento; a epistemologia, do valor
do conhecimento; a metafísica, do fundamento último das coisas em geral; a cosmologia,
da constituição essencial das coisas materiais, de sua origem e de seu
“vir-a-ser”; a ética, da origem e da natureza da lei moral, da virtude e da
felicidade; a psicologia, da natureza humana e das suas faculdades; a teodicéia,
do problema religioso ou da existência e da natureza de Deus e das relações dos
homens com eles; a política, da origem e da estrutura do Estado; a estética,
do problema do belo e da natureza e função da arte.
Vemos,
assim, que a mente humana é por demais inquiridora: quer conhecer a razão das
coisas. Basta ver uma criança fazendo perguntas aos pais. Mas, às mesmas
perguntas podem ser dadas diversas respostas: respostas míticas, científicas,
filosóficas.
As
respostas
míticas são explicações que envolvem a fantasia, embora não
sejam verdadeiras. Como, por exemplo, quando à pergunta da criança “por que o
carro se move”, responde-se “porque uma fada o empurra”. Já as respostas
científicas procuram satisfazer a razão, mas são sempre explicações
incompletas, parciais, fragmentadas, pois dizem respeito apenas a alguns
aspectos (fenômenos) e não abrangem toda a realidade. Por sua vez, as respostas filosóficas procuram
oferecer uma resposta completa de todas as coisas, do conjunto, do todo.
O mito
A
humanidade primitiva contentava-se com as explicações míticas para qualquer
problema. Assim, à pergunta “por que troveja?”, respondia: “porque Júpiter está
encolerizado”; à pergunta “por que o vento sopra?”, respondia: “porque Éolo
está enfurecido”.
A
nós, modernos, estas respostas parecem simplistas e errôneas. Contudo,
historicamente, elas têm uma importância muito grande, pois representam o
primeiro esboço da humanidade para explicar as coisas e suas causas. Sob o véu
da fantasia, há nessas respostas uma autêntica procura das “causas primeiras”
do mundo.
Assim,
ao adentramos no capítulo referente às origens da filosofia, oportuno é voltar
o olhar para o mito, sua definição, suas interpretações principais e sobre a
passagem da mitologia grega para a filosofia.
Um
grande historiador das religiões, Turchi (in La religioni dell’umanità. Assis, 1954, p. 61), dá-nos a seguinte
definição: “mito é a animação dos
fenômenos da natureza e da vida, animação devida a alguma forma primordial e
intuitiva do conhecimento humano, em virtude da qual o homem projeta a si mesmo
nas coisas, isto é, anima-as e personifica-as, dando-lhes figura e
comportamentos sugeridos pela sua imaginação; o mito é, em suma, uma
representação fantástica da realidade, delineada espontaneamente pelo mecanismo
mental”.
Desde
as origens, o homem se indaga sobre a origem do universo, sobre a natureza das
coisas e das forças às quais está sujeito. A função do mito era fornecer uma
explicação para os acontecimentos da natureza e da existência humana: guerra e
paz, bonança e tempestade, abundância e carestia etc.
Todos os povos
antigos – assírios, babilônios, persas, egípcios, hindus, chineses, romanos,
gauleses, gregos – têm os seus mitos. Contudo, dentre todas, a grega é a que
mais se destaca pela riqueza, ordem e humanidade. Daí ter sido originada a
filosofia da mitologia.
Do mito, foram
dadas as mais diversas interpretações, das quais as principais são o mito-verdade
e o mito-fábula.
No
mito-verdade, o mito é uma representação fantasiosa que tende exprimir uma
verdade; aqui, os mitos são as únicas explicações das coisas que a humanidade,
nos seus primórdios, estava em condições de fornecer e nas quais ela acreditava
firmemente. No mito-fábula, o mito é uma narração imaginosa sem nenhuma pretensão
teórica, são representações fantasiosas nas quais ninguém jamais acreditou, nem
mesmo seus criadores.
Os primeiros a
considerarem os mitos como simples fábulas foram os gregos, particularmente os
filósofos. A eles, juntaram-se, mais tarde, os escritores cristãos dos
primeiros séculos (chamados Padres da Igreja), os escolásticos (os
filósofos/teólogos medievais) e a maior parte dos filósofos modernos.
Porém, a
partir do começo do século XX, vários estudiosos das religiões (Eliade), da
psicologia (Freud), a filosofia (Heidegger), da antropologia (Lévi-Strauss), da
teologia (Bultmann) começaram a apoiar a interpretação mito-verdade, afirmando
que a humanidade primitiva, mesmo sem ter condições para isto, deve ter
procurado explicar para si mesma fenômenos como a vida, a morte, o bem, o mal
etc. Para estes estudiosos, os mitos escondem, portanto, sob a capa de imagens
mais ou menos eloquentes, a resposta dada pela humanidade primitiva a estes
grandes problemas (e que, até hoje, também nos intrigam).
Assim, tem-se
que o mito exerceu, entre os povos três grandes funções principais: religiosa,
social e filosófica.
Primeiramente,
o mito é o primeiro degrau no processo de compreensão dos sentimentos
religiosos mais profundos do homem: é, como afirma, Gilkey (in Il destino della religgione nell’era
tecnológica, Roma, 1972, p. 163), “o protótipo da teologia”.
Porém, ao
mesmo tempo, é também aquilo que garante a pertença a este grupo social e não a
outro. De fato, pertencer a este ou àquele grupo depende dos mitos particulares
que alguém cultiva.
Finalmente, o
mito exerce uma função “semelhante” à da filosofia, pois representa o modo de
autocompreender-se dos povos primitivos. Também o homem das civilizações
antigas tem consciência de certos fatos e valores, e cristaliza a causa dos
primeiros e a realidade dos segundos justamente nas representações fantásticas
que são os mitos.
Aqui, diga-se
de passagem que, embora o mito tenha a mesma finalidade da filosofia (fazer
conhecida a verdade), esta procura atingir seu objetivo de modo completamente
diferente. De fato, o mito procede mediante a representação fantástica,
a imaginação poética, a intuição de analogias, sugeridas pela experiência
sensível; permanece, pois, aquém do logos, ou seja, da explicação racional.
A filosofia,
ao contrário, trabalha só com a razão, com rigor lógico, com espírito crítico,
com motivações racionais, com argumentações rigorosas, baseadas em princípios
cujo valor foi prévia e firmemente estabelecido de forma explícita.
Assistamos ao
vídeo abaixo:
Café filosófico:
Mito: o nada que é tudo (1/3)
A religião grega e a filosofia
É
pacífico entre os estudiosos que o conhecimento humano se desenvolveu em três
fases distintas: a fase religiosa, a fase filosófica e a fase científica.
Identifica-se a fase religiosa com a fase mítica da humanidade. Contudo, a
tendência a dar uma estrutura mítica ao pensamento não é exclusiva da religião,
mas também está presente em outras expressões do agir humano, como o esporte,
em que temos os “reis” e as “rainhas” desta ou daquela modalidade.
Em
outras palavras, o mito não desapareceu na nossa época, uma vez que a ciência,
a tecnologia, a política, a religião, o esporte etc. forjam seus mitos. Não
deixa de ser verdade que a interpretação mítica constitui um aspecto
característico dos povos antigos e que, na Grécia, a primeira explicação foi
mítica, ao mesmo tempo em que genuinamente religiosa.
Quando
se fala da religião grega, é necessário distinguir claramente entre a religião
pública e a religião dos mistérios.
A
religião
pública, que tem sua mais bela expressão em Homero, é essencialmente
hierofânica, antropomórfica e naturalista.
Hierofânica, enquanto vê em qualquer
evento cósmico uma manifestação do divino; tudo o que acontece, todos os
fenômenos naturais são obras dos deuses:os trovões e os raios são arremessados
do alto por Zeus, as ondas do mar são levantadas pelo tridente de Poseidon, os
ventos são impelidos por Éolo, e assim por diante.
Antropomórfica, enquanto os deuses são
forças naturais calcadas em formas humanas idealizadas, aspectos do homem
sublimados, personalizados, forças do homem cristalizadas em belíssimas formas,
ou seja, os deuses da religião natural não são mais que homens ampliados e idealizados.
São quantitativamente superiores a nós, não, porém, qualitativamente
diferentes.
Naturalista, ou seja, a santidade não se
encontra nela, porque, pela sua própria essência, os deuses não queriam, nem
poderiam, elevar o homem acima dele mesmo. O que a divindade exige do homem,
segundo Zeller (in La filosofia dei greci
nel suo sviluppo storico. Florença, 1943, p. 105ss), “não é a mudança
íntima de seu modo de pensar, nem a luta contra suas tendências naturais e seus
impulsos; pelo contrário, tudo o que para o homem é natural, vale diante da
divindade como legítimo; o homem mais divino é aquele que cultiva com o máximo
empenho suas forças humanas; e o cumprimento do dever religioso consiste
essencialmente nisto: que o homem faça, em honra da divindade, o que é conforme
à sua própria natureza”.
Outra
característica da religião pública grega é não ser revelada, mas
natural. Os gregos, diversamente dos hebreus, não tinham livros
sagrados ou tidos como fruto da revelação divina. Por isso, eles não tinham uma
dogmática fixa e imutável. Pelo mesmo motivo, não havia na Grécia uma casta
sacerdotal encarregada de guardar os dogmas. Nesta ausência de dogmas e de
encarregados de sua guarda, ausência que permitia a mais ampla liberdade à
especulação filosófica, os historiadores vêem com razão um dos fatores mais
importantes do aparecimento e do desenvolvimento da filosofia entre os gregos.
A religião
pública, com seu quadro mitológico, exerceu grande influência nas reflexões
filosóficas dos pensadores gregos. Prova disto é o surgimento da filosofia ao
tempo em que a religião pública vivia o seu auge.
A religião
dos mistérios – ou orfismo – apresenta-nos os seguintes
pontos: a) no homem reside um princípio divino, um demônio (daimônion), unido a um corpo por causa
de uma culpa original; b) esse demônio é imortal e, por isso, não morre com o
corpo, mas deve passar por uma série de reencarnações até expiar completamente
sua culpa; c) a vida órfica, com suas práticas de purificação, é a única que
pode por fim ao ciclo de reencarnações; d) por isso, quem vive a vida órfica
entrará, depois desta existência, no estado de felicidade perfeita, ao passo
que quem vive outro tipo de vida será condenado a ulteriores reencarnações.
Percebe-se,
pois, diferença fundamental entre a religião pública e a dos mistérios, qual
seja as relações entre a alma e o corpo. Enquanto a religião pública se volta
para uma concepção unitária da alma e do corpo, a dos mistérios professa uma
concepção dualista (alma versus
corpo). As consequências éticas são evidentes. Na religião pública, como se
percebe, não se impõe ao homem nenhuma ascese, mas se encoraja o pleno
desenvolvimento e a plena capacidade de qualquer desejo, capacidade, força e
paixão humanas. Por sua vez, na religião dos mistérios, impõe-se uma ascese
muito rigorosa.
Vários
ensinamentos antropológicos e éticos, como a imortalidade da alma, a condenação
do prazer, o culto da virtude etc., de Pitágoras, Sócrates, Platão, Zenão,
Plotino, são tirados diretamente da religião dos mistérios. E isto basta para
mostrar sua importância para o desenvolvimento da filosofia grega.
Neste ambiente
religioso, surge a filosofia, primeiro como um aprimoramento da religião
pública grega, segundo como aperfeiçoamento da religião dos mistérios. Ambas,
com sua visão mitológica, patrocinaram a elaboração de questões de alguns
homens que, inconformados com as propostas religiosas gregas, buscaram a
verdade bem mais além.
Contexto social, político e
econômico da filosofia grega
Primum vivere, deinde philosophare
(primeiro viver, depois filosofar), diz um adágio latino. E foi exatamente isso
que viveu a Grécia antiga. O surgimento da filosofia, em meandros do século VI
a.C, se deveu ao ambiente sócio-político-econômico porque vivia a Grécia. Sem
condições pacíficas, é quase impossível ao homem filosofar. Quando o homem é
atormentado pela fome ou miséria, oprimido pela escravidão ou pela ignorância,
não tem tranquilidade, nem tempo, nem disposições mentais para formular
hipóteses filosóficas rigorosas e sistemáticas sobre a finalidade de sua
existência, sobre a origem das coisas, sobre os fundamentos da ordem social e
moral.
De
fato, entre os povos primitivos, ou subdesenvolvidos, observa-se a ausência de
especulação sistemática filosófica sistemática. Não será por isso que a
proposta de inclusão da disciplina “filosofia” no ensino médio, em nosso País,
tenha encontrado tantas resistências?
No
decorrer do século VI a.C., a Grécia encaminha-se para uma relativa
estabilidade política. Encerrados os grandes movimentos migratórios, a vida da
cidade (a polis) organiza-se sobre
bases bem definidas, sob o controle de grupos aristocráticos reduzidos; também
a vida econômica intensificou-se e o intercâmbio entre as cidades tornou-se
freqüente.
Este
intenso ritmo de iniciativas e atividades atinge seu ponto mais alto nas
colônias jônias da Ásia Menor (Mileto, Éfeso, Colofão, Clazômena, Focéia) e nas
colônias gregas da Itália meridional (Eléia, Régio, Metaponto, Gela, Agrigento,
Catânia). Tanto nas primeira, quanto nas segundas, os colonos provenientes da
Grécia entregaram-se ao comércio, o que trouxe para as novas comunidades
riqueza e prosperidade.
Riqueza
e prosperidade, por sua vez, proporcionaram às populações altos níveis
culturais, comprovados, ainda hoje, pelas ruínas de templos, túmulos e
estátuas. Ainda, a liberdade decorrente
da distância fez com que as colônias fossem regidas por constituições livres
antes da “mãe pátria”.
Foram
assim as condições sociais, políticas e econômicas mais favoráveis que
propiciaram o nascimento e o florescimento da filosofia nas colônias, que,
passando depois para a Grécia, atingiu os mais altos cumes, justamente em
Atenas, isto é, na cidade onde reinou a maior liberdade já desfrutada na
História Antiga.
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