domingo, 29 de julho de 2012

Nota de Aula II


NOTA DE AULA II
(aulas 4, 5 e 6)

Unidade II -  Origem da Filosofia e desenvolvimento histórico no pensamento grego. 1.   As origens no mundo grego

         Para que serve a filosofia? Costumo dizer que a filosofia não serve para nada e dela devem se aproximar apenas os que buscam a verdade. Somente a partir desta ótica é possível satisfazer o objetivo da filosofia, que não busca fins práticos e não tem interesses externos como a ciência, a arte, a religião e a técnica.
            Pelo contrário, a filosofia tem como único objetivo o conhecimento; ela procura a verdade pela verdade. A filosofia, como disse Aristóteles, na Metafísica, é “livre”, pois não se destina a nenhum uso de ordem prática, realizando-se na pura contemplação da verdade.
            Dissemos anteriormente que todas as coisas podem ser objeto de indagação filosófica. Como decorrência disso, pode haver uma filosofia do homem, dos animais, do mundo, da vida, da matéria, da sociedade, da política, da linguagem, do direito, da religião, do riso, do jogo etc. Na verdade, porém, aqueles que são chamados filósofos estudam de preferência somente alguns problemas, aqueles que são designados com os nomes de lógica, epistemologia, metafísica, cosmologia, ética, psicologia, teodicéia, política, estética, que constituem as partes mais importantes da filosofia.
            A lógica se ocupa do problema da exatidão do conhecimento; a epistemologia, do valor do conhecimento; a metafísica, do fundamento último das coisas em geral; a cosmologia, da constituição essencial das coisas materiais, de sua origem e de seu “vir-a-ser”; a ética, da origem e da natureza da lei moral, da virtude e da felicidade; a psicologia, da natureza humana e das suas faculdades; a teodicéia, do problema religioso ou da existência e da natureza de Deus e das relações dos homens com eles; a política, da origem e da estrutura do Estado; a estética, do problema do belo e da natureza e função da arte.
            Vemos, assim, que a mente humana é por demais inquiridora: quer conhecer a razão das coisas. Basta ver uma criança fazendo perguntas aos pais. Mas, às mesmas perguntas podem ser dadas diversas respostas: respostas míticas, científicas, filosóficas.
            As respostas míticas são explicações que envolvem a fantasia, embora não sejam verdadeiras. Como, por exemplo, quando à pergunta da criança “por que o carro se move”, responde-se “porque uma fada o empurra”. Já as respostas científicas procuram satisfazer a razão, mas são sempre explicações incompletas, parciais, fragmentadas, pois dizem respeito apenas a alguns aspectos (fenômenos) e não abrangem toda a realidade.       Por sua vez, as respostas filosóficas procuram oferecer uma resposta completa de todas as coisas, do conjunto, do todo.


O mito

            A humanidade primitiva contentava-se com as explicações míticas para qualquer problema. Assim, à pergunta “por que troveja?”, respondia: “porque Júpiter está encolerizado”; à pergunta “por que o vento sopra?”, respondia: “porque Éolo está enfurecido”.
            A nós, modernos, estas respostas parecem simplistas e errôneas. Contudo, historicamente, elas têm uma importância muito grande, pois representam o primeiro esboço da humanidade para explicar as coisas e suas causas. Sob o véu da fantasia, há nessas respostas uma autêntica procura das “causas primeiras” do mundo.
            Assim, ao adentramos no capítulo referente às origens da filosofia, oportuno é voltar o olhar para o mito, sua definição, suas interpretações principais e sobre a passagem da mitologia grega para a filosofia.
            Um grande historiador das religiões, Turchi (in La religioni dell’umanità. Assis, 1954, p. 61), dá-nos a seguinte definição: “mito é a animação dos fenômenos da natureza e da vida, animação devida a alguma forma primordial e intuitiva do conhecimento humano, em virtude da qual o homem projeta a si mesmo nas coisas, isto é, anima-as e personifica-as, dando-lhes figura e comportamentos sugeridos pela sua imaginação; o mito é, em suma, uma representação fantástica da realidade, delineada espontaneamente pelo mecanismo mental”.
            Desde as origens, o homem se indaga sobre a origem do universo, sobre a natureza das coisas e das forças às quais está sujeito. A função do mito era fornecer uma explicação para os acontecimentos da natureza e da existência humana: guerra e paz, bonança e tempestade, abundância e carestia etc.
Todos os povos antigos – assírios, babilônios, persas, egípcios, hindus, chineses, romanos, gauleses, gregos – têm os seus mitos. Contudo, dentre todas, a grega é a que mais se destaca pela riqueza, ordem e humanidade. Daí ter sido originada a filosofia da mitologia.
Do mito, foram dadas as mais diversas interpretações, das quais as principais são o mito-verdade e o mito-fábula.
No mito-verdade, o mito é uma representação fantasiosa que tende exprimir uma verdade; aqui, os mitos são as únicas explicações das coisas que a humanidade, nos seus primórdios, estava em condições de fornecer e nas quais ela acreditava firmemente. No mito-fábula, o mito é uma narração imaginosa sem nenhuma pretensão teórica, são representações fantasiosas nas quais ninguém jamais acreditou, nem mesmo seus criadores.
Os primeiros a considerarem os mitos como simples fábulas foram os gregos, particularmente os filósofos. A eles, juntaram-se, mais tarde, os escritores cristãos dos primeiros séculos (chamados Padres da Igreja), os escolásticos (os filósofos/teólogos medievais) e a maior parte dos filósofos modernos.
Porém, a partir do começo do século XX, vários estudiosos das religiões (Eliade), da psicologia (Freud), a filosofia (Heidegger), da antropologia (Lévi-Strauss), da teologia (Bultmann) começaram a apoiar a interpretação mito-verdade, afirmando que a humanidade primitiva, mesmo sem ter condições para isto, deve ter procurado explicar para si mesma fenômenos como a vida, a morte, o bem, o mal etc. Para estes estudiosos, os mitos escondem, portanto, sob a capa de imagens mais ou menos eloquentes, a resposta dada pela humanidade primitiva a estes grandes problemas (e que, até hoje, também nos intrigam).
Assim, tem-se que o mito exerceu, entre os povos três grandes funções principais: religiosa, social e filosófica.
Primeiramente, o mito é o primeiro degrau no processo de compreensão dos sentimentos religiosos mais profundos do homem: é, como afirma, Gilkey (in Il destino della religgione nell’era tecnológica, Roma, 1972, p. 163), “o protótipo da teologia”.
Porém, ao mesmo tempo, é também aquilo que garante a pertença a este grupo social e não a outro. De fato, pertencer a este ou àquele grupo depende dos mitos particulares que alguém cultiva.
Finalmente, o mito exerce uma função “semelhante” à da filosofia, pois representa o modo de autocompreender-se dos povos primitivos. Também o homem das civilizações antigas tem consciência de certos fatos e valores, e cristaliza a causa dos primeiros e a realidade dos segundos justamente nas representações fantásticas que são os mitos.
Aqui, diga-se de passagem que, embora o mito tenha a mesma finalidade da filosofia (fazer conhecida a verdade), esta procura atingir seu objetivo de modo completamente diferente. De fato, o mito procede mediante a representação fantástica, a imaginação poética, a intuição de analogias, sugeridas pela experiência sensível; permanece, pois, aquém do logos, ou seja, da explicação racional.
A filosofia, ao contrário, trabalha só com a razão, com rigor lógico, com espírito crítico, com motivações racionais, com argumentações rigorosas, baseadas em princípios cujo valor foi prévia e firmemente estabelecido de forma explícita.
Assistamos ao vídeo abaixo:

Café filosófico: Mito: o nada que é tudo (1/3)


A religião grega e a filosofia

            É pacífico entre os estudiosos que o conhecimento humano se desenvolveu em três fases distintas: a fase religiosa, a fase filosófica e a fase científica. Identifica-se a fase religiosa com a fase mítica da humanidade. Contudo, a tendência a dar uma estrutura mítica ao pensamento não é exclusiva da religião, mas também está presente em outras expressões do agir humano, como o esporte, em que temos os “reis” e as “rainhas” desta ou daquela modalidade.
            Em outras palavras, o mito não desapareceu na nossa época, uma vez que a ciência, a tecnologia, a política, a religião, o esporte etc. forjam seus mitos. Não deixa de ser verdade que a interpretação mítica constitui um aspecto característico dos povos antigos e que, na Grécia, a primeira explicação foi mítica, ao mesmo tempo em que genuinamente religiosa.
            Quando se fala da religião grega, é necessário distinguir claramente entre a religião pública e a religião dos mistérios.
            A religião pública, que tem sua mais bela expressão em Homero, é essencialmente hierofânica, antropomórfica e naturalista.
Hierofânica, enquanto vê em qualquer evento cósmico uma manifestação do divino; tudo o que acontece, todos os fenômenos naturais são obras dos deuses:os trovões e os raios são arremessados do alto por Zeus, as ondas do mar são levantadas pelo tridente de Poseidon, os ventos são impelidos por Éolo, e assim por diante.
Antropomórfica, enquanto os deuses são forças naturais calcadas em formas humanas idealizadas, aspectos do homem sublimados, personalizados, forças do homem cristalizadas em belíssimas formas, ou seja, os deuses da religião natural não são mais que homens ampliados e idealizados. São quantitativamente superiores a nós, não, porém, qualitativamente diferentes.
Naturalista, ou seja, a santidade não se encontra nela, porque, pela sua própria essência, os deuses não queriam, nem poderiam, elevar o homem acima dele mesmo. O que a divindade exige do homem, segundo Zeller (in La filosofia dei greci nel suo sviluppo storico. Florença, 1943, p. 105ss), “não é a mudança íntima de seu modo de pensar, nem a luta contra suas tendências naturais e seus impulsos; pelo contrário, tudo o que para o homem é natural, vale diante da divindade como legítimo; o homem mais divino é aquele que cultiva com o máximo empenho suas forças humanas; e o cumprimento do dever religioso consiste essencialmente nisto: que o homem faça, em honra da divindade, o que é conforme à sua própria natureza”.
Outra característica da religião pública grega é não ser revelada, mas natural. Os gregos, diversamente dos hebreus, não tinham livros sagrados ou tidos como fruto da revelação divina. Por isso, eles não tinham uma dogmática fixa e imutável. Pelo mesmo motivo, não havia na Grécia uma casta sacerdotal encarregada de guardar os dogmas. Nesta ausência de dogmas e de encarregados de sua guarda, ausência que permitia a mais ampla liberdade à especulação filosófica, os historiadores vêem com razão um dos fatores mais importantes do aparecimento e do desenvolvimento da filosofia entre os gregos.
A religião pública, com seu quadro mitológico, exerceu grande influência nas reflexões filosóficas dos pensadores gregos. Prova disto é o surgimento da filosofia ao tempo em que a religião pública vivia o seu auge.
A religião dos mistérios – ou orfismo – apresenta-nos os seguintes pontos: a) no homem reside um princípio divino, um demônio (daimônion), unido a um corpo por causa de uma culpa original; b) esse demônio é imortal e, por isso, não morre com o corpo, mas deve passar por uma série de reencarnações até expiar completamente sua culpa; c) a vida órfica, com suas práticas de purificação, é a única que pode por fim ao ciclo de reencarnações; d) por isso, quem vive a vida órfica entrará, depois desta existência, no estado de felicidade perfeita, ao passo que quem vive outro tipo de vida será condenado a ulteriores reencarnações.
Percebe-se, pois, diferença fundamental entre a religião pública e a dos mistérios, qual seja as relações entre a alma e o corpo. Enquanto a religião pública se volta para uma concepção unitária da alma e do corpo, a dos mistérios professa uma concepção dualista (alma versus corpo). As consequências éticas são evidentes. Na religião pública, como se percebe, não se impõe ao homem nenhuma ascese, mas se encoraja o pleno desenvolvimento e a plena capacidade de qualquer desejo, capacidade, força e paixão humanas. Por sua vez, na religião dos mistérios, impõe-se uma ascese muito rigorosa.
Vários ensinamentos antropológicos e éticos, como a imortalidade da alma, a condenação do prazer, o culto da virtude etc., de Pitágoras, Sócrates, Platão, Zenão, Plotino, são tirados diretamente da religião dos mistérios. E isto basta para mostrar sua importância para o desenvolvimento da filosofia grega.
Neste ambiente religioso, surge a filosofia, primeiro como um aprimoramento da religião pública grega, segundo como aperfeiçoamento da religião dos mistérios. Ambas, com sua visão mitológica, patrocinaram a elaboração de questões de alguns homens que, inconformados com as propostas religiosas gregas, buscaram a verdade bem mais além.

Contexto social, político e econômico da filosofia grega

            Primum vivere, deinde philosophare (primeiro viver, depois filosofar), diz um adágio latino. E foi exatamente isso que viveu a Grécia antiga. O surgimento da filosofia, em meandros do século VI a.C, se deveu ao ambiente sócio-político-econômico porque vivia a Grécia. Sem condições pacíficas, é quase impossível ao homem filosofar. Quando o homem é atormentado pela fome ou miséria, oprimido pela escravidão ou pela ignorância, não tem tranquilidade, nem tempo, nem disposições mentais para formular hipóteses filosóficas rigorosas e sistemáticas sobre a finalidade de sua existência, sobre a origem das coisas, sobre os fundamentos da ordem social e moral.
            De fato, entre os povos primitivos, ou subdesenvolvidos, observa-se a ausência de especulação sistemática filosófica sistemática. Não será por isso que a proposta de inclusão da disciplina “filosofia” no ensino médio, em nosso País, tenha encontrado tantas resistências?
            No decorrer do século VI a.C., a Grécia encaminha-se para uma relativa estabilidade política. Encerrados os grandes movimentos migratórios, a vida da cidade (a polis) organiza-se sobre bases bem definidas, sob o controle de grupos aristocráticos reduzidos; também a vida econômica intensificou-se e o intercâmbio entre as cidades tornou-se freqüente.
            Este intenso ritmo de iniciativas e atividades atinge seu ponto mais alto nas colônias jônias da Ásia Menor (Mileto, Éfeso, Colofão, Clazômena, Focéia) e nas colônias gregas da Itália meridional (Eléia, Régio, Metaponto, Gela, Agrigento, Catânia). Tanto nas primeira, quanto nas segundas, os colonos provenientes da Grécia entregaram-se ao comércio, o que trouxe para as novas comunidades riqueza e prosperidade.
            Riqueza e prosperidade, por sua vez, proporcionaram às populações altos níveis culturais, comprovados, ainda hoje, pelas ruínas de templos, túmulos e estátuas.    Ainda, a liberdade decorrente da distância fez com que as colônias fossem regidas por constituições livres antes da “mãe pátria”.
            Foram assim as condições sociais, políticas e econômicas mais favoráveis que propiciaram o nascimento e o florescimento da filosofia nas colônias, que, passando depois para a Grécia, atingiu os mais altos cumes, justamente em Atenas, isto é, na cidade onde reinou a maior liberdade já desfrutada na História Antiga.







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